Falta Algo Na Matemática
A matemática é um avião com duas asas antagônicas, que sobrevoa uma cidade densamente povoada.
Axiomas são como as regras básicas de um jogo. Não provamos que são verdadeiras - simplesmente aceitamos para poder começar a jogar. Na matemática, essas regras fundamentais são os pontos de partida a partir dos quais construímos todo o resto.
Vamos pensar na geometria que aprendemos na escola, a geometria euclidiana. Euclides, há mais de dois mil anos, estabeleceu cinco postulados que pareciam tão óbvios que ninguém questionava. Quatro deles eram simples: que podemos traçar uma reta entre dois pontos, que podemos prolongar retas indefinidamente, que podemos desenhar círculos, e que todos os ângulos retos são iguais. Mas o quinto postulado, o das paralelas, sempre foi problemático.
Esse quinto postulado diz que, por um ponto fora de uma reta, só podemos traçar uma única reta paralela àquela reta. Durante séculos, matemáticos como Ptolomeu
, Proclo
, Nasiredine
, Clavio
, Wallis
e Saccheri
tentaram provar que essa “verdade” podia ser deduzida dos outros quatro postulados. Saccheri
, em particular, dedicou-se profundamente a essa tarefa, analisando o que hoje chamamos de “quadriláteros de Saccheri
”, mas mesmo ele, ao explorar a hipótese do ângulo agudo, inadvertidamente desenvolveu resultados da geometria hiperbólica sem perceber.
A grande reviravolta veio no século XIX, quando Gauss
, Bolyai
e Lobachevsky
perceberam que não era possível provar esse postulado porque ele não era necessariamente verdadeiro. A surpreendente descoberta foi que, ao remover este postulado, se assumíssemos que por um ponto poderiam passar várias retas paralelas a uma dada reta, não caíamos em contradição - apenas criávamos uma nova geometria, diferente da euclidiana, mas igualmente consistente.
Hoje chamamos isso de geometria hiperbólica.
E o mais surpreendente: essa geometria “estranha” foi exatamente o que precisariamos para descrever o espaço-tempo na teoria da relatividade de Einstein. A natureza, parece, não se importa com nossas intuições sobre o que é “óbvio” ou não. Nossa intuição é limitada pela nossa percepção e ampliada pelo desenvolvimento dessas ferramentas sofisticadas do conhecimento.
Na teoria dos conjuntos, que é a base da matemática moderna, temos um problema similar com o chamado Axioma da Escolha. Esse axioma diz que, se temos uma coleção de conjuntos não vazios, podemos sempre escolher um elemento de cada conjunto, mesmo que sejam infinitos. Parece razoável, mas leva a resultados que desafiam nossa intuição, como o paradoxo de Banach-Tarski: é possível cortar uma esfera em pedaços e remontá-los para formar duas esferas idênticas à original.
O que torna esse axioma tão intrigante é que não podemos provar se ele é verdadeiro ou falso. Em 1938, Gödel
mostrou que, se a teoria dos conjuntos sem o axioma da escolha é consistente, então também é consistente com ele. Depois, em 1963, Cohen
provou que também é consistente sem ele. Ou seja, temos duas matemáticas possíveis: uma onde o axioma da escolha vale, e outra onde não vale. Ambas funcionam, mas cada uma permite demonstrar teoremas diferentes.
Aqui está o cerne da questão: não existem meios-termos. Ou assumimos alguma forma do Axioma da Escolha, ou não assumimos. Não há “formas mais fracas” que resolvam o problema fundamental - são apenas maneiras diferentes de escondermos a escolha debaixo do tapete. É uma decisão irredutível que precisamos fazer, não algo que possamos contornar com truques formais.
Na prática, a maioria dos matemáticos aceita o axioma da escolha porque ele simplifica muitas demonstrações. Com ele, podemos provar que todo espaço vetorial tem uma base, que todo anel com unidade tem um ideal maximal, e muitos outros resultados fundamentais.
Cheque-mate, matemáticos! Vocês também são pragmáticos quando ninguém os observa!
Perdemos essas ferramentas poderosas, mas ganhamos um mundo onde todos os conjuntos de números reais podem ser mensuráveis (como mostrou Solovay
em 1970, sob certas hipóteses adicionais), evitando paradoxos que fazem matemáticos ficarem acordados até tarde da noite.
A Física, por exemplo, não se importa se aceitamos ou não o axioma da escolha, porque trabalhamos em uma pragmática em que os resultados e a capacidade de predição é o critério da verdade. Inclusive, Físicos em geral não se preocupam com formalismos e costumam jogar infinitos para debaixo do tapete, e em geral, descobre-se que estavam certos no final.
Se os físicos e físicas se importassem com a consistência matemática absoluta, não teria existido transistor nem computadores!
Em especial, a mecânica quântica moderna é formulada em espaços de Hilbert
. O teorema fundamental que afirma que “todo espaço de Hilbert
tem uma base ortonormal” é equivalente ao Axioma da Escolha completo. Não há como contornar essa vergonha com “formas mais fracas” - ou assumimos esta verdade fundamental extra ou abandonamos parte da estrutura matemática necessária para descrever o mundo quântico.
De certa maneira, a matemática parece antecipar os múltiplos universos possíveis, os diferentes regimes de validade, cada um com suas próprias regras e propriedades. Por princípio de economia, uma matemática com o menor número de axiomas seria, em tese, mais “correto”, no entanto dificilmente você verá um Engenheiro Civil construindo um prédio de dimensões usuais usando Relatividade Geral.
A dialética marxista, com sua tríade de tese, antítese e síntese, oferece uma lente fascinante para analisar a evolução das estruturas matemáticas. As contradições são inerentes a nossa percepção da realidade: sentimos o calor do fogo e o frio da noite, apesar de ambos se tratarem do mesmo fenômeno de escoamento de energia térmica; detectamos a partícula e a onda, apesar do fenômeno ser uma terceira coisa que não conseguimos discernir.
Nosso cérebro trabalha com neurônios que se ativam dentro de um limiar químico e quando tentamos modelá-lo, usamos uma funções sigmoides e suas aproximações como separadores lineares, onde tentamos discernir o do , mesmo que essa separação nunca seja bem definida.
Talvez justamente por isso, percebemos que não há síntese definitiva, apenas um ciclo infinito de tensões irredutíveis que moldam nosso entendimento da realidade. Um verdadeiro samsara matemático, um ciclo infinito de escolhas onde nenhuma verdade absoluta parece emergir, apenas perspectivas provisionais que sustentam nossa construção coletiva do conhecimento.
Assim como a deusa hindu Maya teceria a ilusão que nos separa da verdade última, também na matemática permanecemos presos a ilusões pragmáticas. Aceitamos o AC porque ele “funciona”, mesmo sabendo que é uma escolha arbitrária. Construímos prédios, enviamos foguetes e modelamos átomos usando sistemas axiomáticos que, em última instância, são convenções humanas que apesar de tudo são extremamente consistentes.
Então, sim, falta algo na matemática.
Isso, porém, não importa!
Os aviões não vão despencar dos céus, os prédios não desmoronarão amanhã, as bolsas de valores não quebrarão e muito menos os átomos explodirão em uma desestabilização cósmica.
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